Um Camboja no Brasil

A indignação brasileira está mal canalizada. Quando nadamos em um mar de informações conflitantes, pode ser fácil ser arrastado por alguma corrente.  Enquanto isso, crianças maranhenses estudam nessa escola, mostrada no Jornal Nacional em 2016.

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É inadmissível existirem tantas semelhanças entre essa foto e a que eu tirei na escola que conheci no Camboja:

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O Camboja esteve em guerra a maior parte de sua história. O Brasil é um país rico e deve apenas à inaceitável corrupção e incompetência na gestão dos seus recursos essa revoltante situação.

Que me desculpem os que discutem se houve ou não um golpe, que dedicam seu tempo pinçando na imprensa internacional matérias que corroboram essa ou aquela teoria, que vergonhosamente desqualificam o Chico Buarque pela sua posição política, ou que usam a fala da aberração Bolsonaro para desviar o debate como lhes convém. A importância disso tudo é mínima perto do que passam as crianças da escola em Bom Jardim, no Maranhão.

Sempre se fala que as prioridades no Brasil são melhorar a educação e a saúde, de maneira geral, como se essa fosse uma verdade permanente que pairasse desfocada acima das outras consideradas mais imediatas. Está na hora de parar e olhar nos olhos dessas crianças do Maranhão e de tantos outros cantos do Brasil, dos doentes no chão dos hospitais, de cada um que vive sem saneamento básico. É contra isso que a indignação deve ser canalizada.

Investir no ensino fundamental não dá voto nas próximas eleições, mas muda um país a longo prazo. Se aos políticos não interessa trabalhar pelo que não lhes dará retorno, cabe a nós, cidadãos e eleitores, cobrar seriamente e com foco que seja desenvolvido e implementado no Brasil um programa transformador. Isso é perfeitamente possível, já deveria ter sido feito há muito tempo, e depende de nós para acontecer.

A sociedade civil pode muito. Existem projetos espalhados pelo Brasil que em um trabalho de formiguinha fazem diferença – contando com as boas intenções de cidadãos comuns, como minha grande amiga Fernanda, que trabalha muito para ajudar a financiar o tratamento de crianças carentes com câncer. Aqui em Tóquio, a escola particular de meus filhos ajuda uma outra escola no Camboja, que está bem melhor do que a da foto. E não é só com dinheiro, arrecadado com o trabalho de pais e alunos, inclusive o da minha filha de 8 anos. Adolescentes do sétimo ano viajam para lá e conhecem a realidade duríssima de crianças como eles, que só não tiveram o privilégio de nascer em um país menos sofrido.

Já escrevi isso no blog e vou continuar escrevendo: o Brasil é extremamente privilegiado em recursos naturais, tamanho do território, nunca sofreu com guerras ou catástrofes, tem uma população ainda jovem. Não dá para aceitar que escolas como essa no Maranhão ainda existam. Não dá para aceitar que mais da metade da população não tenha saneamento básico. Não dá para aceitar que o dinheiro que vai para a educação seja aplicado com incompetência por tantos anos, em tantos governos.

Como mudar o foco do debate? Se desvencilhando da correnteza e encontrando um lugar seguro para parar e pensar. O silêncio é fundamental para clarear nossa visão. Se não há concordância em questões mais imediatas, com certeza as pessoas bem intencionadas que estão em todas as correntes podem compartilhar da indignação com os fatos incontestáveis.

A nossa classe política é uma vergonha, mas existem alguns que se salvam em diferentes partidos. Um sonho: que até 2018 as feridas mais sérias sejam realmente expostas e discutidas, que haja diálogo com valorização da escuta, que parte do tempo dedicado às redes sociais seja utilizado para a elaboração de ideias. Que a partir de tudo isso surjam mais pessoas realmente dispostas a encarar a política como um serviço público e não um projeto de poder partidário ou enriquecimento individual. E aí, pode sim ser possível renovar o Congresso e o poder executivo e realmente começar a trabalhar.

É muito confortável se indignar no Facebook, fazer comentários agressivos e se identificar apenas com quem pensa dentro no nosso quadrado. Difícil é encarar de verdade que existem muitos países dentro do Brasil, e um deles é como o Camboja. E que ainda não tivemos competência para formar uma classe política digna da riqueza natural e humana que preenche esse território tão privilegiado. Todos temos que assumir essa vergonha e começar a mudar esse jogo.

Convido meus leitores a ler um dos posts que escrevi quando viajei para o Camboja. É importante conhecer um pouco de um país que já sofreu tanto, e assim ver a nossa situação por outra perspectiva. E comparar de novo as duas fotos que publiquei aqui.

Um país que se levanta

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